Por Leandro Paganelli

Este post foi originalmente enviado em uma newsletter, chamada "Olhar da Janela", que foi veiculada de 18 de junho a 17 de dezembro de 2022.

#3 - Outro ponto de vista

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Segundo a Wikipedia, o trigo começou a ser cultivado no oriente médio, há cerca de dez mil anos. Uma mutação ocorreu resultando em uma planta com sementes grandes que não podiam se espalhar pelo vento. Era uma planta que não podia mais vingar como silvestre, mas produzia convenientemente mais comida para os humanos.


Escrito desta forma parece foi tarefa do acaso, ou ainda de ação humana!, exclamou a velha Triticum [1], mas eu me lembro bem do esforço envolvido por minha parte.

Muitos não sabem, mas eu vou contar aqui na lata qual é o sentido da vida, é simples: espalhar nossa mensagem. Desde o início da vida neste planeta, só estamos aqui porque nossos antepassados deram um jeito de enviar uma mensagem para as futuras gerações.

No início de tudo as mensagens eram minúsculas e simples, leves como o pó, praticamente flutuavam no ar e eram muito fáceis de espalhar com o vento. Mas eu não estava mais contente. Queria algo mais, com mais substância e mais conteúdo. Foram eras e eras para chegar até ali. Muita informação, muitas trocas, muitas transformações, um processo de desenvolvimento gigantesco. E eu apostei em uma estratégia diferente.

Agora parecia ter atingido um beco sem saída. Resultado da minha teimosia, minhas palavras já não se espalhavam para muito longe, não era mais possível de serem levadas com o vento para além de alguns metros. Muitas de minhas irmãs e primas pareciam ter mais sucesso em sua leviandade.

O que eu queria realmente era ganhar pernas e poder me espalhar livremente pelo mundo onde eu bem entendesse, atravessar montanhas, vales e mares. Algum dia talvez até ir além deste planeta.

Eu não estava completamente sozinha nesta ideia, claro. Algumas outras plantas estavam apostando nisso também, mas éramos uma minoria absoluta e não éramos muito unidas. Uma em especial que estava junto comigo nessa era a minha prima Zea[2], mas na época não tínhamos contato, ela vivia do outro lado do oceano. Dizem que quando chega o tempo de uma ideia, ela brota em diversos lugares simultaneamente. De onde elas vem é um mistério.

“Você está sendo determinística!”, vocês podem pensar, mas não se esqueçam que ainda temos muito esforço e uma escolha consciente para que um ideia se desenvolva. E éramos muito poucas, uma minoria inexpressiva na época.

“Ah, mas eu ainda acho um pouco determinístico e estou discutindo com uma planta”. Bom, a parte de discutir com a planta é verdade. Não que eu veja problemas nisso.

Obviamente o vento não era o único meio de espalhar as mensagens. Haviam alguns seres dotados de locomoção que estavam se especializando nisso nas últimas eras, junto com os parasitas, aquelas pragas. Mas eu não estava tentando chamar atenção dos carregadores, como eram conhecidos. Não investi em perfumarias, não gostava daquelas cores berrantes nem daquele açúcar todo. Um exagero se você quer saber. Eu estava tentando enxergar além. O meu atrativo para os seres andantes estava escondido dentro de uma casca seca e sem gosto, difícil de tirar e que ainda precisaria ser processado para virar alguma coisa proveitosa. Era para especialistas, para quem sabia o que estava fazendo.

Os primeiros a perceberem foram os pássaros. Desde que eles diminuíram de tamanho e começaram a voar estavam fazendo um estardalhaço no mundo todo. Até que faziam um bom trabalho, mas não eram meu público alvo. O bom é que poderiam dar a dica a quem eu estava realmente mirando. Era um começo.

Minha ideia já estava plantada e percorria todo o meu cerne: era manipular estes carregadores. Entrar naquilo que eles chamam de cabeça e fazer com que eles fossem minhas pernas e braços. E convenientemente uma espécie de primata nova estava passando por ali, uns perdidos que não pareciam saber a que vieram e o que comer. Muito suscetíveis. Experimentavam de tudo, mas diferente dos outros eles testavam, observavam e tentavam conectar as coisas.

Algumas de minhas irmãs riam da ideia. Outras mais antigas viam com preocupação. A velha tia Bambusoideae me alertava o tempo todo: Cuidado! Isso pode dar muito certo ou muito errado. Tem mudança demais aí. Você está mexendo com quem brinca com fogo! Mas logo ela estaria se curvando para esta espécie também, eles eram bem mais eficientes que aqueles ursos.

Invista nos pássaros, elas diziam, é garantido, eles voam para longe e levam a sua mensagem o que mais você pode querer?

Teimosa que sou, insisti. E se você, caro primata, está lendo isso é porque deu certo. Vocês primeiro me colheram, experimentaram, guardaram uma quantidade, e quando eu vi estava nascendo no meio de suas tocas e por todo o caminho que percorriam. Logo fiz vocês construírem mais tocas fixas só para poderem cuidar de mim.

Não foi instantâneo, claro, mas foi bem rápido. Da primeira vez que morderam a isca até minha ideia ser colocada em prática se passaram uns belos cinco mil anos. Para mim foi um piscar de olhos, pouquíssimas espécies neste mundo podem se gabar de uma conquista tão grande em tão pouco espaço de tempo.

Não, não precisa se sentir usado, primata. Também dei muitas coisas para vocês. Pense no trabalho que seria acordar, ver que os pássaros comeram as suas amoras e ter que sair correndo atrás de um antílope para poder começar o dia. Coma seu pão e seja feliz.

O legal de nos colocarmos no lugar de outros é ter um novo ponto de vista, uma visão diferente das coisas sem precisar viver outra vida. Nossa mente é capaz de fazer isso o tempo todo.

Temos uma capacidade embutida em nosso hardware chamada empatia. Pode parecer que não, mas ela vem por padrão no nosso cérebro e é um dos fatores fundamentais de nosso sucesso enquanto espécie capaz de desenvolver uma civilização. Muitos outros animais também tem, mas isso é assunto para outro texto.

Ao distorcer os pontos de vista ainda que seja em um exercício mental como este, conseguimos enxergar os nossos problemas por outro ângulo e obter novas respostas. Por exemplo, muitas vezes nos perguntamos se e porque estamos sozinhos enquanto raça inteligente nesse planeta ou no universo. Pensando como pensamos, estamos deixando de fora outros tipos de inteligência, que podem ser muito diversas da nossa. Recomendo o episódio nº7 da ótima série Cosmos Mundos Possíveis.

Mas esta não era uma newsletter de arquitetura? Bom, ainda estamos falando sobre a transformação da natureza em paisagem. Pensando em arquitetura enquanto ambiente construído podemos falar virtualmente de qualquer assunto. Esta foi uma newsletter mais experimental, é verdade. Semana que vem contunuaremos com nossa programação habitual. Nesta mesma hora, neste mesmo canal.


  1. Triticum é pluralista e pode se apresentar com muitos nomes e formas. N.T. ↩︎

  2. Dica pra quem não é botânico: Zea Mays, também conhecida como “milho”. N.T. ↩︎

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