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Olá, como está seu café? Bom? Hoje é um dia tranquilo? Nunca é, é verdade. Mas pelo menos a gente consegue uns minutos para pensar antes que o dia comece de fato. As vezes dá para saber mais sobre a vida das pessoas pelo modo como se toma o café da manhã do que qualquer outra coisa. Claro, cada um tem as suas prioridades e seus momentos preferidos. Mas tem um período em que precisamos sentar com um pouco de calma, nos alimentar, começar o dia e se possível parar para pensar um pouco na vida, coisa muito importante. Estou dizendo isso pensando e refletindo sobre os assuntos que estão saindo nestas últimas newsletters. Das curiosidades arquitetônicas pulei para o início da civilização, e comecei a explorar alguns assuntos que não tenho muito domínio mas que muito me interessam. Essa questão do desenvolvimento da humanidade e das transformações de causamos no ambiente. É um assunto bastante espinhoso e muitas vezes discutido com grande pessimismo. Então se preparem pois hoje vamos falar de um grande conflito: a paisagem que você vê de sua janela_._
Afinal o que é paisagem? Esta pergunta não é nem um pouco fácil de responder, é a busca de vidas inteiras de pesquisa nos campos da sociologia, antropologia, arquitetura, história, engenharia. Objetos de inúmeras teses, dissertações, artigos, palestras, cursos e colóquios. Então não é em uma newsletter escrita e pensada enquanto tomo café que vou querer concluir alguma coisa, mas o que posso fazer é passar algumas divagações despretensiosas, não-acadêmicas e falar de alguns artigos em que esbarro por aí. Não ouso nem dizer citar artigos, pois isso já seria demasiado acadêmico para este propósito.
Entendo a paisagem como a Natureza (no sentido selvagem, original, não-humano) transformada por nossa cultura, ainda que não tocada, ela passa a ser vista como recurso. A partir do momento em que olhamos o mundo e o dividimos em fronteiras, determinamos o que é floresta, montanha, rio, deserto. Então por mais que digamos “esta área é de preservação e permanecerá intocada”, ela é entendida como um recurso guardado. Não é mais a natureza por si mesma. É uma área delimitada e controlada.
Isso não é apenas um problema nosso com nossa interação biológica nos ecossistemas naturais. Não, a coisa não para por aí, sempre complicamos mais. A transformação da natureza em paisagem é uma trama de processos que envolvem povo, arte, política, religião, história e estórias. É um processo traumático cheio de conflitos humanos em que uns são explorados e outros se beneficiam.
Esbarrei em um artigo no blog Arquitetura em Notas, em que Gabriel Fernandes cita um ensaio com uma visão bastante crítica deste processo focando no colonialismo. O ensaio se Chama Mundo Quase-Árido e é do Rondinelly Gomes Medeiros. Está disponível aqui.
Neste ensaio, Rondinelly nos coloca uma visão de que “a paisagem é o terreno no qual vai passar o processo civilizatório”. Então paisagem tem tudo a ver com colonialismo e todas as violências envolvidas no processo.
Vou citar aqui o mesmo trecho citado por Gabriel:
“A empreitada colonizadora começa no mesmo momento em que a Europa acerta os últimos detalhes para o nascimento da Natureza, aquela de onde se pode extrair, com os aparelhos corretos, a verdade: no novo mundo, ao estupor da visão do paraíso seguiu-se pari passu um processo irreversível, desenfreado e catastrófico de engenharia ambiental similar à engenharia social das reduções jesuíticas – uma catequese da terra, uma tentativa de domesticação das forças do solo, por delimitação, adequação, eliminação, valoração, monetarização; esforço de determinação material da paisagem. Enfim, um mundo novinho em folha para ser configurado, com toda sorte de brinquedos do parque humano: plantations, rodovias, aldeamentos, hidrelétricas, pastos, asfaltos, estacionamentos, engenharias.
A paisagem é o nome precário para esse preconceito no qual o Adão fáustico — o colonizador — subsume as multiplicidades, as interações e os interesses do mundo ao seu prazer de capturar e determinar. A paisagem é o terreno no qual vai passar o trator do processo civilizatório.”
Pesado, não é? Temos saída, alternativa, solução? Vale a pena ler o texto. Spoiler: teremos vários plot twists. Como contraponto ao processo de colonização o autor coloca o sertão, suas insurgências, resistências e desobediência civil. Depois a invenção do Nordeste, uma máquina de guerra para combater o sertão. E mais recentemente o conceito de semiárido como combate ao Nordeste.
No semiárido coletivos tentam sair da lógica colonizadora que cria uma dicotomia de excessos e escassez, e de salvadores messiânicos cheios de recursos e projetos megalômanos. Eles estabelecem redes de agricultores experimentadores que por si só buscam, através da troca de técnicas sustentáveis, sobreviver e resistir aos elementos civilizatórios - “o latifúndio, o patronato, a monocultura tóxica”.
É um conflito que em sua regionalidade e complexidade expõe a universalidade de nosso mundo, que se reflete ou que refletirá nesta mesma paisagem que vemos de nossa janela.
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